Com a "gilmarização" do Judiciário, o que já era ruim ficou ainda pior. Como bem disse o professor Dalmo Dallari em seu artigo profético: “é assim que se degradam as instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional democrática”. De fato, o Judiciário do meu país necessita ser reinventado.
Não é por estar na condição de ministro do STF que Gilmar Mendes fica
imune às críticas. Por isso, vi com muita naturalidade o episódio em que
ele foi achincalhado em um voo comercial, enquanto viajava de Brasília
para Cuiabá.
Não é de se estranhar que o polêmico ministro, a quem o Ministério
Público de Mato Grosso credita diversas irregularidades, desde
negociação envolvendo a venda de uma faculdade falida para o governo
corrupto do Silval Barbosa até irregularidades ambientais em uma fazenda
de sua propriedade, seja hostilizado por cidadãos conscientes.
Segundo o Valor Econômico, no ano passado, ele usou verba do STF para
ir ao casamento de sua enteada, em Fortaleza. Na verdade, quem pagou
por estas passagens foi o povo.
Não é de hoje que este mato-grossense vem aprontando. Há 16 anos
atrás, a revista “Época” informou que a Advocacia Geral da União,
através do seu chefe, Gilmar Mendes, pagou R$ 32,4 mil ao Instituto
Brasiliense de Direito Público, do qual ele próprio era um dos
proprietários, para lá seus subordinados fazerem cursos. Mendes está
apenas colhendo o que vem semeando há tempos.
O jurista Dalmo Dallari publicou, em 2002, um artigo, na Folha de S.
Paulo, intitulado “Degradação do Judiciário”, no qual ele alertava que,
se a indicação do Gilmar pelo FHC para o Supremo Tribunal Federal fosse
aprovada, não seria nenhum exagero dizer que não só a proteção dos
direitos no Brasil estaria correndo sério risco, como também o combate à
corrupção e a própria normalidade constitucional.
A profecia de Dallari se confirmou. Mendes transformou as votações no
Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral em palanques,
onde destila suas convicções, conceitos e pré-conceitos. E foi ele um
dos militantes da linha de frente do coletivo do Judiciário que se
alinhou na sustentação jurídica da maior de todas as corrupções no
Brasil, que foi o golpe de 2016.
Até mesmo o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, acusou
Mendes de sofrer de "decrepitude moral" e de cortejar
"desavergonhadamente o poder político".
No primeiro dia deste mês, um dos seus colegas, também ministro do
STF Luis Roberto Barroso, respondendo a uma crítica do Gilmar, disse:
“acho que o Direito deve ser igual para ricos e para pobres, e não é
feito para proteger amigos e perseguir inimigos".
Se referindo aos frequentes encontros entre Gilmar e o usurpador
Temer e sua proximidade com o “Mineirinho” investigado (Aécio Neves),
Barroso disse: "não frequento palácios, não troco mensagens amistosas
com réus e não vivo para ofender as pessoas”. Barroso afirmou ainda que o
colega "muda de jurisprudência de acordo com o réu".
No ano passado, referindo-se a Mendes, Barroso já havia dito: “vossa
Excelência fica destilando ódio o tempo inteiro. Não julga, não fala
coisas racionais, articuladas. Sempre fala coisas contra alguém, sempre
com ódio de alguém, com raiva de alguém”.
E isso me faz lembrar das cenas de pessoas gritando dentro de
restaurantes chiques, na cidade de São Paulo, contra um ex-ministro da
Saúde que decidira pela contratação de médicos cubanos para atender nas
periferias brasileiras. E têm aquelas cenas deprimentes de fascistas
bradando contra outro ex-ministro, que acompanhava a mulher em
tratamento contra um câncer.
Em todos esses casos, a cólera insana foi alimentada por pessoas como
Gilmar Mendes, que, dentro do Judiciário, não se limitam a fazer o que
diz a lei, se manifestando somente nos processos que julgam. Esses,
geralmente opinam na mais completa impunidade para além do que a lei
permite.
E a decisão de Mendes, em determinar à Polícia Federal que investigue
as pessoas que o admoestaram, demonstra bem que o abuso (do direito de
não gostar do Gilmar) é combatido com outro abuso, mais odioso: do poder
de autoridade.
De fato, como escreveu Dallari: “sem o respeito aos direitos e aos
órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei
do mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista,
do mais demagogo, do mais distanciado da ética”.
Mas, Gilmar Mendes não está só. Um dia desses, a atual presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministra Carmem Lúcia, confessou que já está
atenta ao que dizem as ruas. E sabe que o povo está “de saco cheio”,
inclusive com os magistrados.
Isso bem demonstra que a postura de alguns juízes, com a
“gilmarização” de suas ações, chegou a um nível que começa a afastar a
credibilidade e o respeito que deveria ser tributado ao Poder
Judiciário.
Nunca houve tanta desconfiança e antipatia como vemos agora. Parece
que aquela decisão de aplaudir o abuso de alguns juízes (porque julgavam
alguém de quem não gosto), se revelou muito ruim, e a opinião pública
começa a criticar. Não foi à toa que, durante o clássico entre São Paulo
e Santos realizado no Estádio do Pacaembu, a galera, em coro, chamou o
ministro de “Ladrão”, “corrupto”, “vagabundo”, “vergonha do brasil”, por
várias vezes.
Grande parcela da população sabe que, além dos gordos vencimentos,
algumas vezes acima do que permite a Constituição Federal, os juízes
recebem ajuda de custo para despesas de transporte e mudança;
auxílio-moradia; salário-família; diárias; representação; gratificação
pela prestação de serviço à Justiça Eleitoral; gratificação adicional de
cinco por cento por quinqüênio; gratificação de magistério, por aulas
na escola de magistratura, entre outros benefícios.
Não vou entrar nos detalhes, mas, pelo que se percebe, são muito
pouco os juízes desse país que estão cem por cento dentro da lei, no que
se refere aos vencimentos que recebem. E o argumento de que isso (o
benefício) está na lei não é válido, porque os projetos de normas sobre
esse tema só podem ser apresentados pelo STF.
Ou seja: os juízes integram a uma categoria profissional com o poder
de editar as próprias leis, que são elaboradas pelos próprios membros da
categoria, cabendo ao Parlamento “apenas” a aprovação.
No dia da abertura do ano Judiciário, os juízes foram ao STF defender
seus privilégios e penduricalhos. E no dia 15 de março, está sendo
preparada uma greve geral, e o argumento é a defesa da manutenção de um
privilégio odioso: o auxílio-moradia.
Com o afastamento sem crimes de responsabilidade da presidente Dilma,
em 2016, e seguindo o roteiro do golpe, com a recente condenação e logo
mais com a prisão do maior líder popular deste país, mesmo sem as
provas dos “crimes” que lhe imputam, só vem escancarar ainda mais o que
todos nós já sabíamos: o Poder Judiciário sempre foi elitista e
antidemocrático.
Mas, com a "gilmarização" do Judiciário, o que já era ruim ficou
ainda pior. Como bem disse o professor Dalmo Dallari em seu artigo
profético: “é assim que se degradam as instituições e se corrompem os
fundamentos da ordem constitucional democrática”.
De fato, o Judiciário do meu país necessita ser reinventado.
Antonio Cavalcante Filho, o Ceará, é sindicalista e
escreve neste espaço às sextas-feiras - E-mail:
antoniocavalcantefilho@outlook.com