quarta-feira, 14 de março de 2018

A GILMARIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO


Com a "gilmarização" do Judiciário, o que já era ruim ficou ainda pior. Como bem disse o professor Dalmo Dallari em seu artigo profético: “é assim que se degradam as instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional democrática”. De fato, o Judiciário do meu país necessita ser reinventado. 



RD News

Por Antonio Cavalcante Filho


 

Não é por estar na condição de ministro do STF que Gilmar Mendes fica imune às críticas. Por isso, vi com muita naturalidade o episódio em que ele foi achincalhado em um voo comercial, enquanto viajava de Brasília para Cuiabá.
 
Não é de se estranhar que o polêmico ministro, a quem o Ministério Público de Mato Grosso credita diversas irregularidades, desde negociação envolvendo a venda de uma faculdade falida para o governo corrupto do Silval Barbosa até irregularidades ambientais em uma fazenda de sua propriedade, seja hostilizado por cidadãos conscientes.

Segundo o Valor Econômico, no ano passado, ele usou verba do STF para ir ao casamento de sua enteada, em Fortaleza. Na verdade, quem pagou por estas passagens foi o povo.

Não é de hoje que este mato-grossense vem aprontando. Há 16 anos atrás, a revista “Época” informou que a Advocacia Geral da União, através do seu chefe, Gilmar Mendes, pagou R$ 32,4 mil ao Instituto Brasiliense de Direito Público, do qual ele próprio era um dos proprietários, para lá seus subordinados fazerem cursos. Mendes está apenas colhendo o que vem semeando há tempos.

O jurista Dalmo Dallari publicou, em 2002, um artigo, na Folha de S. Paulo, intitulado “Degradação do Judiciário”, no qual ele alertava que, se a indicação do Gilmar pelo FHC para o Supremo Tribunal Federal fosse aprovada, não seria nenhum exagero dizer que não só a proteção dos direitos no Brasil estaria correndo sério risco, como também o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional.

A profecia de Dallari se confirmou. Mendes transformou as votações no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral em palanques, onde destila suas convicções, conceitos e pré-conceitos. E foi ele um dos militantes da linha de frente do coletivo do Judiciário que se alinhou na sustentação jurídica da maior de todas as corrupções no Brasil, que foi o golpe de 2016.

Até mesmo o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, acusou Mendes de sofrer de "decrepitude moral" e de cortejar "desavergonhadamente o poder político".

No primeiro dia deste mês, um dos seus colegas, também ministro do STF Luis Roberto Barroso, respondendo a uma crítica do Gilmar, disse: “acho que o Direito deve ser igual para ricos e para pobres, e não é feito para proteger amigos e perseguir inimigos".

Se referindo aos frequentes encontros entre Gilmar e o usurpador Temer e sua proximidade com o “Mineirinho” investigado (Aécio Neves), Barroso disse: "não frequento palácios, não troco mensagens amistosas com réus e não vivo para ofender as pessoas”. Barroso afirmou ainda que o colega "muda de jurisprudência de acordo com o réu".

No ano passado, referindo-se a Mendes, Barroso já havia dito: “vossa Excelência fica destilando ódio o tempo inteiro. Não julga, não fala coisas racionais, articuladas. Sempre fala coisas contra alguém, sempre com ódio de alguém, com raiva de alguém”.

E isso me faz lembrar das cenas de pessoas gritando dentro de restaurantes chiques, na cidade de São Paulo, contra um ex-ministro da Saúde que decidira pela contratação de médicos cubanos para atender nas periferias brasileiras. E têm aquelas cenas deprimentes de fascistas bradando contra outro ex-ministro, que acompanhava a mulher em tratamento contra um câncer.

Em todos esses casos, a cólera insana foi alimentada por pessoas como Gilmar Mendes, que, dentro do Judiciário, não se limitam a fazer o que diz a lei, se manifestando somente nos processos que julgam. Esses, geralmente opinam na mais completa impunidade para além do que a lei permite.

E a decisão de Mendes, em determinar à Polícia Federal que investigue as pessoas que o admoestaram, demonstra bem que o abuso (do direito de não gostar do Gilmar) é combatido com outro abuso, mais odioso: do poder de autoridade.

De fato, como escreveu Dallari: “sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da ética”.

Mas, Gilmar Mendes não está só. Um dia desses, a atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Carmem Lúcia, confessou que já está atenta ao que dizem as ruas. E sabe que o povo está “de saco cheio”, inclusive com os magistrados.

Isso bem demonstra que a postura de alguns juízes, com a “gilmarização” de suas ações, chegou a um nível que começa a afastar a credibilidade e o respeito que deveria ser tributado ao Poder Judiciário.

Nunca houve tanta desconfiança e antipatia como vemos agora. Parece que aquela decisão de aplaudir o abuso de alguns juízes (porque julgavam alguém de quem não gosto), se revelou muito ruim, e a opinião pública começa a criticar. Não foi à toa que, durante o clássico entre São Paulo e Santos realizado no Estádio do Pacaembu, a galera, em coro, chamou o ministro de “Ladrão”, “corrupto”, “vagabundo”, “vergonha do brasil”, por várias vezes.

Grande parcela da população sabe que, além dos gordos vencimentos, algumas vezes acima do que permite a Constituição Federal, os juízes recebem ajuda de custo para despesas de transporte e mudança; auxílio-moradia; salário-família; diárias; representação; gratificação pela prestação de serviço à Justiça Eleitoral; gratificação adicional de cinco por cento por quinqüênio; gratificação de magistério, por aulas na escola de magistratura, entre outros benefícios.

Não vou entrar nos detalhes, mas, pelo que se percebe, são muito pouco os juízes desse país que estão cem por cento dentro da lei, no que se refere aos vencimentos que recebem. E o argumento de que isso (o benefício) está na lei não é válido, porque os projetos de normas sobre esse tema só podem ser apresentados pelo STF.

Ou seja: os juízes integram a uma categoria profissional com o poder de editar as próprias leis, que são elaboradas pelos próprios membros da categoria, cabendo ao Parlamento “apenas” a aprovação.

No dia da abertura do ano Judiciário, os juízes foram ao STF defender seus privilégios e penduricalhos. E no dia 15 de março, está sendo preparada uma greve geral, e o argumento é a defesa da manutenção de um privilégio odioso: o auxílio-moradia.

Com o afastamento sem crimes de responsabilidade da presidente Dilma, em 2016, e seguindo o roteiro do golpe, com a recente condenação e logo mais com a prisão do maior líder popular deste país, mesmo sem as provas dos “crimes” que lhe imputam, só vem escancarar ainda mais o que todos nós já sabíamos: o Poder Judiciário sempre foi elitista e antidemocrático.

Mas, com a "gilmarização" do Judiciário, o que já era ruim ficou ainda pior. Como bem disse o professor Dalmo Dallari em seu artigo profético: “é assim que se degradam as instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional democrática”.

De fato, o Judiciário do meu país necessita ser reinventado.

Antonio Cavalcante Filho, o Ceará, é sindicalista e escreve neste espaço às sextas-feiras - E-mail: antoniocavalcantefilho@outlook.com