Jack Vasconcelos criou os manifestoches, brasileiros manipulados a ponto de se apropriarem de símbolos que não lhe são exclusivos, como a camisa da Seleção Brasileira, ou que não lhe pertencem, como o bater de panelas, próprio de quem passa fome.
Manifestoches manipulados por uma mão grande, que pode ser a Globo, mas não só. Refere-se a todos os donos do poder.
Por Joaquim de Carvalho
O
Carnaval do Rio em 2018 já entrou para a história, mas o último
capítulo desta jornada será escrito com a divulgação do resultado do
júri, nesta quarta-feira.
Duas visões de mundo foram expostas nos desfiles deste ano e uma delas deve prevalecer, com o resultado das notas dos jurados.
Não significa que uma dessas
duas escolas vá vencer, mas há uma disputa implícita entre a Paraíso do
Tuiuti e a Beija-Flor de Nilópolis.
Não é uma questão técnica apenas, é uma questão política.
E é impossível dissociar o samba
da política, não da política partidária, menor, mas daquela que define a
relação entre as pessoas num território.
O samba trata do cotidiano, em
geral das pessoas do morro, o morro que foi ocupado como resultado de um
processo multissecular de exclusão social.
A arte do Carnaval está lá, desde sempre. Mas se encontra também em outras comunidades de excluídos.
Nesta Carnaval de 2018, de um
lado, a Beija-Flor, se destacou pela apresentação com um enredo que
poderia ser escrito por um editor do Globo, com alegorias que remetem à
corrupção.
Ratos correndo com malas de dinheiro, o prédio da Petrobras em ruína, crianças abandonadas, miséria.
Como se todas essas mazelas fosse resultado da corrupção política exclusivamente.
É o roteiro da Lava Jato.
A Paraíso do Tuiuti, de outro
lado, se destacou por apresentar a causa desse estado de coisas. Foi
mais profunda, foi mais inteligente, foi intelectualmente mais
sofisticada.
A escola, novata entre as grandes, retratou a escravidão, mas não como uma página virada da história do Brasil.
A escravidão que ecoa nos dias
de hoje, através da ação uma elite insensível, gananciosa,
mistificadora, manipuladora e sanguinária.
É o roteiro daqueles que denunciam a Lava Jato como um instrumento de afirmação de classe, da classe dos que mandam, daqueles que estão acima da política institucional.
Jack Vasconcelos, o
carnavalesco, mostrou que o golpe que tirou Dilma Rousseff do poder é
resultado direto da mesma correlação de forças que fez do Brasil o
último país a abolir a escravidão nas Américas.
Abolição que não se seguiu da
necessária política compensatória, como aconteceu nos Estados Unidos no
século XIX e aqui, só a partir de 2003, ainda que timidamente, no
governo do PT.
Jack Vasconcelos criou os
manifestoches, brasileiros manipulados a ponto de se apropriarem de
símbolos que não lhe são exclusivos, como a camisa da Seleção
Brasileira, ou que não lhe pertencem, como o bater de panelas, próprio
de quem passa fome.
Manifestoches manipulados por uma mão grande, que pode ser a Globo, mas não só. Refere-se a todos os donos do poder.
Carteira de trabalhado queimada
não é uma crítica à falta de trabalho regular, que obriga o brasileiro
ao trabalho informal, como mentiu o jornalismo da Globo, ao descrever o
desfile.
Foi uma alegoria que denuncia a
extinção dos direitos, resultado da reforma trabalhista e da
terceirização irrestrita, ambas frutos de uma intensa e antiga pressão
dos donos da Globo.
A Tuiuti mostrou que a raiz dos
nossos problemas está na desigualdade social, que se ampliou com o golpe
e deve se ampliar ainda mais se o golpe não for contido.
A Beija-Flor mostrou o peso dos
impostos na vida dos brasileiros, fazendo eco ao MBL, que não contam que
quem paga imposto no Brasil é pobre, porque rico ou sonega, ou não é
tributado.
O pobre, quando compra uma aspirina, paga imposto.
Para manter este estado de coisas é que se move a máquina da corrupção.
Tem, a propósito,
uma afiliada da Globo, a RBS, flagrada na Operação Zelotes, o raio x
dos senadores, sem que até agora tenha sido incomodada pela Justiça.
Os donos da Globo foram
denunciados por crime contra a ordem tributária, num processo da Receita
Federal que descobriu sonegação milionária na aquisição dos direitos de
transmissão da Copa de 2002.
O processo desapareceu da Receita Federal na véspera da denúncia ser enviada ao Ministério Público Federal.
Uma neta de Roberto Marinho teve
seu nome encontrado na papelada do escritório brasileiro da Mossack
Fonseca, que tinha uma única atividade: abrir as portas dos paraísos
fiscais para a lavagem de dinheiro ou ocultação de patrimônio.
É um braço do escândalo mundial Panamá Papers, mas nada aconteceu com Paula Marinho, a neta de Roberto Marinho.
A mesma neta usufruiu durante muitos anos de um imóvel construído ilegalmente numa área de proteção ambiental em Parati.
O processo é antigo, tem mais de
seis anos, e até agora a Justiça não conseguiu tomar o depoimento de
uma mulher que é a laranja dos verdadeiros proprietários.
Essa mulher, que mora no Rio de
Janeiro, ignora as intimações, e a Justiça Federal não cogita condução
coercitiva, nesse caso absolutamente justificável.
No escândalo da Fifa, que envolve corrupção grossa, a Globo até agora se safa, como bagre ensaboado na mão de um pescador.
Seu diretor envolvido nas negociações de direitos de transmissão foi abatido pelas denúncias, mas permanece de boca fechada.
A lista de suspeitas envolvendo a Globo é extensa.
Mas nesta quarta-feira, depois do resultado, se der Beija-Flor, como parece ser seu desejo —
até comentarista internacional da emissora elogiou a escola —, a Globo
repetirá a ladainha — o brasileiro não tolera corrupção, etc.
O buraco é mais embaixo, e a
Tuiuti mostrou onde ele começa, mas, nas relações que se tecem a partir
de um grupo de comunicação, a verdade — e o mérito — é o que menos
importa.
A Beija-Flor, a propósito, tem relações antigas com a família Marinho.
Seu patrono, Anísio Abraão
David, presidente de honra da Beija-Flor, comprou em 2004 de Roberto
Marinho o triplex de cobertura em Copacabana, onde o fundador da Globo
costumava receber convidados para uma famosa festa de Reveillon.
O triplex, já em nome de Anísio,
acusado de explorar jogo ilegal, foi alvo em 2011 de uma operação
cinematográfica da Polícia Civil, com agentes descendo de rapel de
helicóptero para cumprir mandado de busca.
Anísio, condenado a mais de 47
anos de prisão, está solto e a escola em que ele manda se sente à
vontade para denunciar a corrupção na avenida, com o incentivo e o
elogio da TV da família Marinho.
Já a Tuiuti, este ano, chega ao júri do Carnaval com uma única força, a do povo.
Nunca o Carnaval espelhou tanto a realidade brasileira.