terça-feira, 9 de outubro de 2012

Há 45 anos era assassinado na Bolívia o guerrilheiro Ernesto Che Guevara

 

Che Guevara e os mortos que nunca morrem

“Eu tive um irmão, não nos encontramos nunca mas não importava, meu irmão desperto enquanto eu dormia, meu irmão me mostrando atrás da noite sua estrela escolhida”.(Cortázar)

 

No dia em que executaram o Che Guevara em La Higuera, uma aldeola perdida nos confins da Bolívia, Julio Cortázar – que na época trabalhava como tradutor na Unesco – estava em Argel. Naquele tempo – 9 de outubro de 1967 – as notícias demoravam muito mais que hoje para andar pelo mundo, e mais ainda para ir de La Higuera a Argel.


Diz Eduardo Galeano, que conheceu o Che Guevara: ele foi um homem que disse exatamente o que pensava, e que viveu exatamente o que dizia. Assim seria ele hoje. Já não há tantos homens talhados nessa madeira. Aliás, já não há tanto dessa madeira no mundo. Mas há os mortos que nunca morrem. Como o Che. E, dos mortos que nunca morrem, é preciso honrar a memória, merecer seu legado, saber entendê-lo. Não nas camisetas: nos sonhos, nas esperanças, nas certezas. Para que eles não morram jamais. O artigo é de Eric Nepomuceno.


Por Eric Nepomuceno

No dia em que executaram o Che Guevara em La Higuera, uma aldeola perdida nos confins da Bolívia, Julio Cortázar – que na época trabalhava como tradutor na Unesco – estava em Argel. Naquele tempo – 9 de outubro de 1967 – as notícias demoravam muito mais que hoje para andar pelo mundo, e mais ainda para ir de La Higuera a Argel.

Vinte dias depois, já de volta a Paris, onde vivia, Cortázar escreveu uma carta ao poeta cubano Roberto Fernández Retamar contando o que sentia: “Deixei os dias passarem como num pesadelo, comprando um jornal atrás do outro, sem querer me convencer, olhando essas fotos que todos nós olhamos, lendo as mesmas palavras e entrando, uma hora atrás da outra, no mais duro conformismo... A verdade é que escrever hoje, e diante disso, me parece a mais banal das artes, uma espécie de refúgio, de quase dissimulação, a substituição do insubstituível. O Che morreu, e não me resta mais do que o silêncio”.

Mas escreveu:

Yo tuve un hermano
que iba por los montes
mientras yo dormía.
Lo quise a mi modo,
le tomé su voz
libre como el agua,
caminé de a ratos
cerca de su sombra.
No nos vimos nunca
pero no importaba,
mi hermano despierto
mientras yo dormía,
mi hermano mostrándome
detrás de la noche
su estrella elegida.

A ansiedade de Cortázar, a angústia de saber que não havia outra saída a não ser aceitar a verdade, a neblina do pesadelo do qual ninguém conseguia despertar e sair, tudo isso se repetiu, naquele 9 de outubro de 1967, por gente espalhada pelo mundo afora – gente que, como ele, nunca havia conhecido o Che.

Passados exatos 44 anos da tarde em que o Che foi morto, o que me vem à memória são as palavras de Cortázar, o poema que recordo em sua voz grave e definitiva: “Eu tive um irmão, não nos encontramos nunca mas não importava, meu irmão desperto enquanto eu dormia, meu irmão me mostrando atrás da noite sua estrela escolhida”.

No dia anterior, 8 de outubro de 1967, um Ernesto Guevara magro, maltratado, isolado do mundo e da vida, com uma perna ferida por uma bala e carregando uma arma travada, se rendeu. Parecia um mendigo, um peregrino dos próprios sonhos, estava magro, a magreza estranha dos místicos e dos desamparados. Foi levado para um casebre onde funcionava a escola rural de La Higuera. No dia seguinte foi interrogado. Primeiro, por um tenente boliviano chamado Andrés Selich. Depois, por um coronel, também boliviano, chamado Joaquín Zenteno Anaya, e por um cubano chamado Félix Rodríguez, agente da CIA. Veio, então, a ordem final: o general René Barrientos, presidente da Bolívia, mandou liquidar o assunto.

O escolhido para executá-la foi um soldadinho chamado Mario Terán. A instrução final: não atirar no rosto. Só do pescoço para baixo. Primeiro o soldadinho acertou braços e pernas do Che. Depois, o peito. O último dos onze disparos foi dado à uma e dez da tarde daquela segunda-feira, 9 de outubro de 1967. Quatro meses e 16 dias antes, o Che havia cumprido 39 anos de idade. Sua última imagem: o corpo magro, estendido no tanque de lavar roupa de um casebre miserável de uma aldeola miserável de um país miserável da América Latina. Seu rosto definitivo, seus olhos abertos – olhando para um futuro que ele sonhou, mas não veria, olhando para cada um de nós. Seus olhos abertos para sempre.

Quarenta e quatro anos depois daquela segunda-feira, o homem novo sonhado por ele não aconteceu. Suas idéias teriam cabida no mundo de hoje? Como ele veria o que aconteceu e acontece? O que teria sido dele ao saber que se transformou numa espécie de ícone de sonhos românticos que perderam seu lugar? Haveria lugar para o Che Guevara nesse mundo que parece se esfarelar, mas ainda assim persiste, insiste em acreditar num futuro de justiça e harmonia? Um lugar para ele nesses tempos de avareza, cobiça, egoísmo?

Deveria haver. Deve haver. O Che virou um ícone banalizado, um rosto belo estampado em camisetas. Mas ele saberia, ele sabe, que foi muito mais do que isso. O que havia, o que há por trás desse rosto? Essa, a pergunta que prevalece.

O Che viveu uma vida breve. Passaram-se mais anos da sua morte do que os anos da vida que coube a ele viver. E a pergunta continua, persistente e teimosa como ele soube ser. Como seria o Che Guevara nesses nossos dias de espanto? Pois teria sabido mudar algumas idéias sem mudar um milímetro de seus princípios.

Diz Eduardo Galeano, que conheceu o Che Guevara: ele foi um homem que disse exatamente o que pensava, e que viveu exatamente o que dizia.

Assim seria ele hoje.

Já não há tantos homens talhados nessa madeira. Aliás, já não há tanto dessa madeira no mundo. Mas há os mortos que nunca morrem. Como o Che.

E, dos mortos que nunca morrem, é preciso honrar a memória, merecer seu legado, saber entendê-lo. Não nas camisetas: nos sonhos, nas esperanças, nas certezas. Para que eles não morram jamais. Como o Che.

Fonte Carta maior

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Che: Homem e Exemplo


Che não era um Quixote lutando contra moinhos, mas um ser humano convencido até a alma dos seus sonhos, o que o une a todos os progressistas do mundo, nos quais a dor ou o cansaço não matou a utopia.

Pietro Alarcón
Advogado, professor da PUC-SP.


Lembro que, nos setenta, a imagem do Che, estampada no muro de algum lugar da avenida e algo desgastada pelo sol e pela chuva, me aguardava todos os dias quando me dirigia à escola. Anos depois, ao final dos oitenta, observei a mesma imagem, quando no meio da praça que leva seu nome – Praça Che – na Universidade Nacional de Bogotá, discutíamos em um encontro estudantil sobre a necessidade de lutar pela redução do valor das matrículas, nossa oposição à guerra contra a União Patriótica e a solidariedade mais efetiva com o movimento agredido pelo paramilitarismo.
 
De volta à nossa universidade, surgiu a idéia de desenhar um imenso Che em um dos muros centrais da faculdade. Com um modelo pré-desenhado, o trabalho foi mais simples do que pensávamos. Demoramos cerca de três horas – entre as 22 de segunda e a primeira hora da terça-feira.

À manhã seguinte o Che estava lá, eterno. Os cabelos ao vento. O olhar no futuro. E não foram poucos os que vieram a dar os parabéns para a gente. Época de lutas na rua, “Livros sim, armas não!”, de música e sonhos, os que não se vão ainda que amadureçam e mudemos de cenário.

Quarta-feira, cedo chegamos à faculdade. Para nossa surpresa, cadê o Che? Em seu lugar a parede, agora pintada de branco, um branco intenso, para apagar qualquer sombra. Não pensamos muito, essa noite estava tudo pronto de novo. Na quinta, o Che estava lá. Montamos guarda a noite toda. Os porteiros não deixaram que ingressássemos na universidade. Mesmo assim, vigiávamos em sistema de rodízio. Descobrimos o que já sabíamos: a direção da faculdade contratara pintores para executar o serviço. Os pintores – três – foram convencidos de que não existiam condições objetivas para retirar a imagem, que passou a ser o símbolo da luta ideológica. 

Era questão de princípios: a pintura do Che era muito mais do que um capricho, pois representava o espírito de resistência organizada de um movimento estudantil que teimava em prosseguir, apesar das ameaças constantes à vida. E nada era mais vivo que o nosso Che. Aquele que, como todos que amamos, consideramos nossa propriedade. Ao dia seguinte, festa na faculdade, um grupo de alunos coletou mais de mil assinaturas para manter o Che. O resto foram reuniões, discursos, a universidade sitiada, enfim, histórias a contar em outra oportunidade.

A “luta ideológica”

Sempre acho que, desde esse episódio, das clássicas formas de luta que se registram tradicionalmente na sociedade entre aqueles que impulsionam a transformação em prol do progresso e a justiça contra os que teimam em perenizar seus privilégios, a luta ideológica me pareceu a mais complexa. Isso porque a idéia é gerar uma consciência tal que motive ou bem seja uma atuação pela modificação ou uma pela conservação do status quo.

Nesse campo ideológico, a reconstrução do passado de conquistas e experiências dos movimentos sociais e das constantes práticas políticas dos trabalhadores, camponeses, intelectuais, ou seja, do acervo de lutas dos povos, constitui um dever. Até porque as constantes pressões dos meios de comunicação – aqueles em mãos de transnacionais midiáticas e com laços indissolúveis com a esquematização e manutenção do poder por minorias sociais – criam caos, semeiam confusões, distorcem realidades, acomodam fatos. Enfim, tentam sempre impedir o reconhecimento justo aos seres humanos que, para além da própria vida, permitem inspirar a atuação presente e, ainda, oferecer um caminho em perspectiva vitoriosa, com reflexões e ações que, embora desde outra época, ainda podem encontrar validez, quando interpretadas com criatividade, diante do flagrante desrespeito à dignidade humana.

Não em vão divulgam valores a partir da promoção de certos heróis e falsos messias, proclamam símbolos que supostamente encarnam os desejos de todos. Ainda que finjam de profetas, sabe-se do seu compromisso com poderosos esquemas. Tratam, assim, de moldar pensamentos de muitos, para sustentar ou dar estabilidade à situação que favorece apenas a uns quantos.

O fenômeno não é novo. É mais uma constante histórica. O Império Romano mostrava Espartacus – o pastor trácio que lutava contra a escravidão desde o Monte Vesúvio–, de maneira sistemática, como um assassino, visando criar uma imagem profundamente negativa entre as chamadas personas livres. Em que pese a máquina de propaganda da minoria romana no poder, a força do exemplo de Espartacus tem sido permanente no desenvolvimento de outros episódios em que se pretende o reconhecimento ou ampliação dos direitos.

Claro está que, no terreno da luta social, há os referentes legítimos, aqueles que os povos reconhecem, pessoas de carne e osso, que nascem e desenvolvem seu pensamento e ação nas mais difíceis circunstâncias. Como homens, seu diagnóstico sobre assuntos como a correlação de forças em determinado momento e espaço, sobre a conjuntura e a capacidade para agir em favor das mudanças, pode ser sempre discutido – afinal, são homens, isso não desmerece sua atuação, pelo contrário, a dignifica ainda mais. Contudo, seu compromisso com a mudança histórica necessária, sua legitimidade ética, sua honestidade e transparência como atores históricos não admitem dúvidas. Esses aceleram o curso da História e fazem trânsito a ela e nela.

Como o vitupério não faz efeito – insensível, brutal –, então um setor dos formadores de opinião a serviço de interesses bem-conhecidos usa uma outra fórmula: pretende convertê-lo em ícone inofensivo, um mito ideológico do qual se retira seu profundo potencial transformador. Assim, aventureiro irracional ou romântico ou até inatingível para o comum dos mortais são adjetivos nesse sentido, como se a aventura e o romance não fossem inerentes ao ser humano ou como se sua vida tivesse transcorrido fora da História.

Não, nada há fora da História – e, nela, Che, assim como naquele tempo de estudante, continua vivo. Na verdade, não sem certa alegria constatamos que, se há quem tem necessidade de falar tão mal de alguém cuja morte faz 40 anos neste 9 de outubro [9/10/2007], então, não há melhor reconhecimento de que seu pensamento, ação, sonhos, imagem e representação persistem ao tempo. No caso, não somente isso acontece, mas Che é ainda escandalosamente ameaçador para aqueles assentados nas galerias atuais do mais selvagem dos modelos econômicos.

Assim, a lembrança na nossa época não é melancólica, mas profundamente alegre. Como tampouco a reflexão sobre o vigor do pensamento de Che é uma retrospectiva dogmática ou uma leitura mecânica, mas apenas a constatação de que a apropriação criativa das experiências é uma virtude para todos os que pretendem contribuir a novos tempos.

Do nascimento à Medicina

O caso é que, como se sabe, Che nasce no inverno austral de 1928, na mesopotâmia argentina, na antiga região guarani, de sangue irlandês e espanhol. Aos dois anos, após uma pneumonia, descobre-se a asma que, aliada ao mate, serão seus companheiros por toda a sua existência.

Sua primeira infância em Alta Gracia, na Serra de Córdoba, transcorre em um cenário no qual se misturam a austera elegância pós-colonial e o surgimento de uma classe operária, que prontamente é marginalizada. Ainda que alguns, dentre eles o próprio pai – Ernesto Guevara Lynch –, reconheçam a preocupação do Che com a questão social desde os tempos de juventude, é sabido que ele rejeitava essa idéia: “No tuve nunca preocupaciones sociales durante la adolescencia ni participé mínimamente en la lucha política y estudiantil en Argentina”, diz em carta ao escritor Lisandro Otero, em 1963.

Como atesta seu amigo de sempre, Alberto Granado, o que nunca poderia ter rejeitado, ainda que quisesse – e nem sequer por excesso de modéstia –, era sua vocação pela leitura. Pré-adolescente asmático, sem poder realizar grandes esforços físicos, a doença o obrigava a permanecer tranqüilo, o tempo que aproveitava para ler obras de aventuras e personagens míticos. Desfilaram ante seus olhos Julio Verne, Alexandre Dumas e Emilio Salgari. Leu, também, o “Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry, ao tempo que mostrava notável interesse pela Arqueologia e pela Antropologia.

Depois, as leituras de Paul Verlaine, de Baudelaire e Sartre, diretamente do francês e acompanhadas dos comentários da sua mãe – Célia de la Serna –, marcariam um aprimoramento da sua sensibilidade.

Caminhou, andou de bicicleta, praticou rúgbi, natação e alpinismo, estudou Grafologia e decidiu-se primeiro a estudar Engenharia, até que, em 1947, se inscreve na Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. Paciente de um famoso alergista da época – o Dr. Salvador Pisani –, passou, pouco depois, a ser seu colaborador.

Quando, em dezembro de 1951, inicia sua viagem com Granado pela América Latina na motocicleta batizada como “A Poderosa”, é indubitável que as motivações da leitura o acompanham, ainda que a desculpa oficial seja a visita a alguns leprosários com o objetivo de desenvolver pesquisas sobre alergias e vacinas. O desejo de conhecer o continente, de procurar o sentido da sua própria liberdade, será determinante no futuro e, nesse processo, suas leituras mudam, ligadas agora mais a conhecer a literatura hispano-americana.

Conhece a América desde o Chile até a Venezuela e, de volta a Buenos Aires, forma-se em Medicina para, em julho de 1953, partir novamente, agora com preocupações que conjugam a Ciência e o desenvolvimento do social.

De fato, a visão da difícil realidade econômica dos povos da América o impacta desde a sua primeira viagem e inspira novos horizontes temáticos. Tudo o que é humano interessa, os ritos, as tradições, as lendas. Daí suas visitas a Machu Picchu, mas também às ruínas do antigo Império Maia na Guatemala em 1954 e às do Império Asteca em 1955.

Na Guatemala, no início de 1954, começa a trabalhar no projeto de escrever uma obra sobre a função do médico na América Latina. É a época de Jacobo Arbenz, o presidente que nesse país centro-americano promove um processo de reformas democráticas. Che prontamente se dispõe a trabalhar com o governo, até que a intervenção da CIA dará lugar ao golpe de Estado que conduzirá o coronel Castillo Armas ao poder. Refugiado na embaixada argentina, obtém uma bolsa para realizar estágio no Hospital Geral de México.

Em carta a sua mãe, em abril de 1954, declara: “De dos cosas estoy seguro: la primera es que si llego a la fase auténticamente creativa, entre los 30 y 35 años, mi ocupación exclusiva o al menos la principal será la física nuclear, la genética o una materia de este tipo, que reagrupe muchas de las cosas más interesantes del conocimiento; la segunda es que América Latina será el teatro de mi aventura con un peso mucho más grande de lo que había creído”.

No México, em 1955, Che começa a colaborar com um grupo de exilados cubanos que preparam a expedição à ilha, no intuito de lutar contra a ditadura de Fulgêncio Batista.


Ali, nesse instante, define-se muito de seu futuro, mas também do futuro de outros muitos.
Essa é uma história que também merece ser lembrada.

Pode-se eleger uma opção política por diversas circunstâncias: pela família, pelos amigos, pela procura, consciente ou inconsciente, daquilo que outorgue sentido à vida, pela atmosfera de solidariedade política e humana que rodeia o entorno em que se desenvolve nossa existência.

As situações mais imprevisíveis e casuais podem se apresentar, facilitando o passo do mero espectador ao de ator social; e o que, ao princípio, pode ser apenas uma aflição momentânea converte-se em um modo de encarar a vida, uma filosofia que inspira a práxis diária.

A vida de Ernesto Guevara transcorreu na Argentina sendo testemunha de conflitos como o da Guerra Chile–Bolívia pela saída deste último ao oceano, do acompanhamento da sua família aos refugiados da Guerra Civil Espanhola, das denúncias do seu pai em reuniões e eventos políticos da perigosa infiltração do nazismo no seu país.

No entanto, os sucessos mais interessantes que podem ser levados em conta para entender a formação do comandante Che Guevara têm antecedentes nos sucessos da Bolívia, entre 1951 e 1953, e se encontram, de forma mais acentuada, na Guatemala de 1954: “He nacido en Argentina, he combatido em Cuba y he comenzado a ser revolucionario en Guatemala”, escreve em carta enviada a Guilherme Lorentzein.

Na Bolívia, Guevara assiste ao primeiro grande movimento de massas que o impressionará profundamente: a Revolução de 1952. Nela, o golpe de Estado no país é rejeitado pelos sindicatos operários e mineiros. Uma insurreição popular e armada vence o exército e surge, no bojo do processo, a COB – a Central Sindical dos Trabalhadores da Bolívia – que, convertida em poder, inicia a transformação da sociedade. Sob forte pressão, o governo proclama o sufrágio universal e a nacionalização das minas de estanho entre julho e outubro de 1952. A reforma agrária começa a ser efetivada em agosto de 1953.

Diversos fatores, que podem ser analisados em outra oportunidade, impediram o progresso das reformas na Bolívia. Saliente-se agora que o jovem Guevara observa, nitidamente, a força e a invencibilidade de um povo organizado. Partindo, Ernesto Guevara dirige-se à Costa Rica, a Honduras e à Nicarágua. Nesses países, observa e reflete sobre o panorama da exploração que por sobre homens e mulheres promovem as transnacionais, como a tristemente conhecida United Fruit Company. Opina, agitado, inquieto leitor da história da América, nos círculos de amigos, sobre a identidade que verifica entre os trabalhadores, independentemente da sua nacionalidade.

Na Guatemala, em 1953, Jacobo Arbenz promove a reforma agrária. Ernesto chega ao país e constata que as reformas promovidas são análogas às da Bolívia, que o governo caminha em sentido contrário aos interesses da United Fruit. Prontamente, sente a necessidade de agir, de assumir um compromisso maior, de maneira que procura os comunistas do PGT – Partido dos Trabalhadores –, se oferece no pronto-socorro médico e nas brigadas juvenis militares que defendem o movimento diante da decisão da Conferência Interamericana – que, reunida em março de 1954, autoriza, através de uma resolução, a invasão da Guatemala, com apoio dos Estados Unidos, desde o território da vizinha Honduras.

O exílio de Arbenz e a desconfiança do governo com relação à capacidade popular de defender as conquistas diante da agressão o decepcionam. Convencido de que as reformas democráticas e sociais somente não serão anuladas se houver uma força militar ancorada no povo organizado, recorre, decidido, à procura de um suporte teórico que lhe outorgue maior consistência. Volta-se à leitura de Marx, agora não apenas com a curiosidade das primeiras aproximações à Filosofia (aquelas da secundária, quando se propôs a fazer um dicionário filosófico), mas com o interesse em aprofundar estudos, conhecer e diagnosticar problemas, oferecer saídas coerentes, ter uma formação mais sólida.

Assim, ao jovem que procura entender as causas que originam a escassez de oportunidades, a miséria das maiorias dos latino-americanos, a dor e a fome, se soma a experiência, a convicção, o compromisso amadurecido.

Não é um mero rebelde, alguém que temerariamente se exponha ao perigo, nem um irresponsável, mas alguém que conhece como poucos a situação, e que não toma decisões precipitadas. Mas que está disposto ao trabalho, voluntarioso e animado.

Percebe que reformas democráticas requerem uma versão de sociedade que supere as modalidades de uma representação política mentirosa, de suporte fraco em um esquema de partidos onde o interesse público é um elemento formal. Tenta um desenho de Estado que supere a noção precária de elencar direitos sociais sem efetividade alguma.

Empreender os rumos do desenvolvimento sobre bases econômicas e valores diferentes dos tentados até o momento na América lhe parece apenas lógico. Descobre e ratifica seus pensamentos nas intermináveis discussões no México com Hilda Gadea, a moça intelectual que o desafia, a militante da ala esquerda do APRA Peruano que “tiene un corazón por lo menos de platino”.

Esse era o Ernesto Guevara que, em novembro de 1955, em casa de Maria Antonia González, no México, conheceria Fidel Castro Ruz, um advogado cubano que procurava recursos para iniciar uma viagem a sua terra, com a idéia de prosseguir a luta contra a ditadura de Batista. A viagem só foi possível na noite de 24 de novembro de 1956, quando o Granma partiu de Tuxpan com oitenta e dois homens.

Na época, Guevara se considera um revolucionário, de visão continental, mas não um marxista. No entanto, as leituras de Marx o diferenciam do restante de expedicionários do Movimento 26 de Julho. Suas freqüentes análises fundadas em São Carlos (“Querida mamá, São Carlos ha hecho una nueva adquisición. Del futuro no puedo decir nada”) fazem com que seja nomeado o responsável pela biblioteca e pela educação política.

Nas aulas, além do interesse em transmitir idéias, do companheirismo e da solidariedade, destaca algo singular: cada vez que se refere ou chama a atenção de alguém o faz utilizando a expressão “Che”, no começo ou no final da frase. Os alunos, irreverentes ainda nas mais complexas circunstâncias, o batizam de Che. Rio-platense, Guevara não se incomoda, nem perde o seu argentinismo. Seu senso de humor é reconhecidamente diferente dos companheiros cubanos. O apelido Che vingou e passou a imortalizá-lo.

Nesta altura, Che está convencido de que não é possível modificar as condições de existência sem a ação humana consciente. Não somente pensa no ser humano, mas age como acha que todo ser humano deve agir. Tenta ensinar com o exemplo e manifestar sua essência de ser social não apenas como aquele que, física e cotidianamente, compartilha das idéias dos outros e vive e convive com outros, pois sua idéia é ir além. No momento, sua idéia consiste em fazer pensar a todos que, em que cada ação humana, há implícita uma referência a certa estrutura social que, quando não responde às expectativas dos seres humanos, deve naturalmente ser modificada.

Assim, Che proclama comportamentalmente que o sujeito individual deve pensar coletivamente. Destarte, a ação humana é fundamental e a compreensão do modelo social e das suas limitações é imprescindível para transformá-lo. Reside, ali, nessas reflexões, o potencial teórico revolucionário de uma parte do seu pensamento, que seria conhecido mais tarde, quando da publicação de “El socialismo y el hombre en Cuba”, em uma carta dirigida a Carlos Quijano, do semanário “Marcha de Montevideo”, em março de 1965.

Na carta, Che se debruça por sobre a essência do homem e seu papel no processo de construção de uma nova sociedade. Começa refutando, não somente do ponto de vista teórico, mas fático, o argumento de setores críticos à revolução de que nela o Estado coage o indivíduo, o anula, enquanto o Estado se engrandece, golpeia a liberdade individual.

Che explica como a luta guerrilheira se desenvolve em dois distintos ambientes: o povo e a guerrilha; e como, em ambos, a entrega do ser humano, sua atitude em favor das mudanças, deve ser exemplar. A tarefa, explica o Che, consiste em “encontrar la fórmula para perpetuar en la vida cotidiana esa actitud heroica”.

Caracterizando o povo cubano, Che expressa como esse ente não é apenas a soma de elementos da mesma categoria, mas uma força que participa de todo o processo, na reforma agrária e na administração das empresas estatais, na resistência aos furacões e ao ataque à Playa Girón. E como o povo, embora reconheça o governo e suas lideranças, aquelas que interpretam suas necessidades e ganham a sua confiança com a fidelidade aos compromissos, também obriga à correção de rumo, quando estas erram. Tudo isso sem pretender dizer, como ele próprio esclarece, que o modelo seja o ideal, pois a percepção da massa implica uma interação complexa, que requer métodos específicos, onde a intuição é apenas o começo.


Claro está que o pano de fundo desse processo de unidade não pode ser a lei do valor, inerente ao capitalismo. A mercadoria tem efeitos não somente na organização da produção, mas também na consciência individual que, no capitalismo, se pauta pelo interesse material, pela rentabilidade.
Esse não pode ser o elemento central. O homem não é algo acabado. Na construção do socialismo, “las taras del pasado se trasladan al presente en la conciencia individual y hay que hacer un trabajo continuo para erradicarlas. La nueva sociedad en formación tiene que competir muy duramente con el pasado”.

Há, então, que modificar o pano de fundo. Simultaneamente à base material deve ir nascendo o novo homem, moralmente comprometido com o trabalho como valor social, e não como instrumento de satisfação da necessidade individual.

Sabe-se que o capitalismo usou a força, reprimiu duramente seu passado, educou o ser humano na máxima de que seu valor depende da quantidade de bens que possua. Che propõe um outro processo. A auto-educação é promovida porque a institucionalidade revolucionaria, conduzindo o indivíduo a uma nova atitude: a da responsabilidade como motor do desenvolvimento social. O ser humano é completamente livre na medida em que não somente tem o necessário para a sua existência, mas porque pensa, reflete, participa, vive em comunidade e observa como seu desenvolvimento não é o individual, mas social. Na medida em que seu trabalho se evidencia no desenvolvimento de todos, e não no crescimento das riquezas de alguns; na medida em que a mercadoria-homem deixa de existir.

A contribuição do Che à compreensão da necessidade de rever os valores que norteiam as nossas sociedades está ligada a suas experiências anteriores à Revolução Cubana, ao seu estudo permanente não somente da literatura marxista ou revolucionária, mas também à leitura que recria, em forma de novelas, de crônicas e contos, as dificuldades dos nossos povos. E, ainda, à vivência do início do processo de edificação de um novo estilo de conduzir os negócios do Estado, onde prima o interesse público, o respeito pela vida e os valores essenciais dos seres humanos.

Nesse sentido, o pensamento do Che se distancia de uma compreensão mecanicista da evolução dos modelos sociais. Sua idéia de construção socialista não é o resultado apenas da inevitável maturidade de contradições econômicas, mas da ação humana, da ação consciente do homem na História; e, para isso, o ser humano precisa se despojar de um conjunto de prejuízos, preconceitos e fórmulas de individualismo que o isolam do conjunto.

O ser humano não é uma ilha, está indissoluvelmente ligado aos outros, e tanto mais contribui a seu crescimento e felicidade quanto mais oferece sua existência à construção do crescimento e da felicidade de todos. Por isso, nas suas palavras, há que tomar o indivíduo humano concreto em seu processo de liberação e o homem novo é pilar fundamental da construção do socialismo.

O pensamento de Che flui em um cenário de contradições, antes e depois da Revolução Cubana, e muitas questões que lhe parecem claras antes de 1959 serão revistas depois. Contudo, essa idéia de homem novo, a compreensão de que não existem receitas preconcebidas para redefinir a América Latina e o conteúdo humanista do seu pensamento ainda permanecem, desde a minha óptica, francamente incontroversos.

Resta, ainda, o Che militar, o que deixamos para o próximo artigo dessa série.

Ingressamos, nesta fase final das nossas anotações sobre a contribuição de Ernesto Che Guevara, a alguns aspectos de seu pensamento sobre as formas de luta e as vias para a revolução. Com relação a tais pontos, Che não somente argumenta sobre as possibilidades cubanas de triunfo e construção do programa socialista, mas também sobre as perspectivas de uma mudança no cenário da América Latina na sua plenitude e, ainda, de uma mutação na correlação de forças internacional contra os Estados que promovem o colonialismo, em tempos de Guerra Fria.

A real dimensão do humanismo revolucionário do Che somente pode ser explicada a partir da ação em favor da libertação dos povos. Che entendia que os aliados naturais do processo revolucionário não eram necessariamente os governos, nem sequer, como ele mesmo expressou várias vezes, aqueles que se apresentavam como amigos e, no entanto, eram presas fáceis das tentações dos Estados mais poderosos, senão os povos. Assim, a luta popular em outros países não somente da América Latina, mas da África e da Ásia, assim como a resposta solidária que fosse dada desde o interior dos países centrais, seria de fundamental importância para o sucesso da Revolução Cubana e de todo e qualquer processo que empreendesse o caminho ao socialismo.

Duas questões importantes devem ser levadas em conta nessa ação libertadora: a primeira, a ação militar propriamente dita, que implica no Che a preparação que obtém com o general Bayo, sua leitura sobre os fundamentos de tática e estratégia de Clausewitz e, obviamente, sua experiência na guerra de guerrilhas; a segunda, a vocação internacionalista, a qual nunca abandonou e que foi o resultado, não somente da compreensão de que a Revolução Cubana somente teria possibilidades de sucesso sobre a base da solidariedade internacional, das contínuas convocações ao conjunto dos povos à luta antiimperialista, senão, essencialmente, da sua vivência, a que o colocou em contato com a realidade desesperada e sem esperanças dos homens e mulheres da América.

Como acertadamente lembra Roberto Massari em “Che Guevara: Grandeza y riesgo de la utopia”, a preparação militar do Che começa na Guatemala, em 1954, quando se alista nas brigadas juvenis, e prossegue no México sob as ordens do general Bayo. O general, veterano da Guerra Civil Espanhola, tinha a virtude de complementar conhecimentos militares próprios das práticas de um exército regular com os conhecimentos da guerra de todo o povo e das históricas guerras de trincheiras no cenário americano. Che lembra especialmente dos seus ensinamentos por ocasião da vitória em Las Villas. Quando, após sua morte física, publica-se a obra “Táctica y estratégia de la revolución latinoamericana”, é possível observar a influência de Bayo aliada às formulações sobre a guerra e a política oriundas de Clausewitz.

Tema de obrigatória abordagem é sua percepção sobre a questão moral e seu entrelaçamento com a questão militar. As forças revolucionárias, sustenta, devem crescer moralmente, posto que essa é a base para o cumprimento das tarefas no dia-a-dia. O agir está ligado à espiritualidade. Essa opinião, ele a levará em conta até o final, em solo boliviano. E, a essa questão moral, Che adiciona na prática dois elementos: a tática de guerra de movimentos (por isso, na Bolívia, Che divide seus homens, como ele mesmo coloca no seu diário, em grupos de vanguarda, centro e retaguarda em permanente mobilidade) e a unidade com os setores do povo (“La guerra de guerrillas no es outra cosa que una expresión de la lucha de masas y no se puede pensar aisladamente de su medio natural, que es el pueblo”).

Há que dizer que a ignorância de alguns lhes permite, sem qualquer pudor, qualificar o Che como terrorista. Com efeito, demonstrando seu desconhecimento sobre o conceito de terrorismo, sobre a natureza real das ações militares – ecoando sobre o que outros perigosamente dizem –, o acusam sem, minimamente, fazer uma leitura prévia do seu pensamento. É de bom alvitre, quando algo se desconhece, dar-se ao trabalho de ler e, se isto não é possível, então, talvez calar a boca seja a melhor opção.

Na obra “La guerra de guerrillas”, publicada em 1960, Che expõe seu pensamento com relação ao terrorismo: “El sabotaje no tiene nada que ver con el terrorismo; el terrorismo y el atentado personal son fases absolutamente distintas. Creemos sinceramente que el terrorismo es un arma negativa, que no produce de ninguna manera los efectos deseados, que puede inducir al pueblo a ponerse en contra de un determinado movimiento revolucionario y que comporta una perdida de vidas entre sus ejecutores muy superior a la ventaja obtenida”.

Che também não é alguém que reconheça apenas um caminho para a transformação social. Novamente, na sua “Táctica y estratégia de la revolución latinoamericana”, expressa: “Existe, sin embargo, alguna posibilidad de tránsito pacífico (…) pero, en las condiciones actuales de América, cada minuto que pasa se hace más difícil para el empeño pacifista y los últimos acontecimientos vistos en Cuba muestran un ejemplo de cohesión de los gobiernos burgueses con el agresor imperialista, en los aspectos fundamentales del conflicto. Recuérdese nuestra insistencia: tránsito pacífico no es logro de un poder formal en elecciones o mediante movimientos de opinión pública sin combate directo, sino la instauración del poder socialista, con todos sus atributos, sin el uso de la lucha armada”.

Como é possível perceber claramente, Che não descartava a possibilidade de assumir o poder e iniciar a construção de uma sociedade mais justa atravessando a luta popular sem o poder das armas. Contudo, também é enfático em reconhecer que a agressão imperial contra Cuba e contra as manifestações populares em prol das mudanças democráticas e progressistas impede os caminhos menos dolorosos para o povo, que, indubitavelmente, se vê forçado a implementar recursos e homens para uma defesa diante de um inimigo poderoso.

Pois bem, certamente, muitas questões ainda podem ser ditas sobre a vigência do pensamento de Che. Nosso propósito não poderia ser esgotar sua ação, vida e obras. Focalizamos, por isso, em três segmentos, os elementos que nos parecem hoje mais determinantes e dos quais podemos extrair lições concretas, não para uma reprodução dogmática, mas para um aprendizado dialético.
 
Em primeiro lugar, em tempos de integração, o pensamento do Che implica reconhecer que a unidade decorre não de pressões econômicas nem políticas, mas de gestos concretos que se dirijam a criar um cenário de paz e de segurança para todos. Falar de integração enquanto as tropas do país destroem, agridem, torturam e enquanto Guantánamo se constitui em terra imune à aplicação da legalidade internacional é a postura mais hipócrita que se pode esperar de um Estado. Em segundo lugar, o resgate do ser humano, como mola propulsora do trabalho, da sua dignidade como agente de mudanças democráticas. E, finalmente, a idéia de que a paz é uma bandeira vigorosa, e que a vocação popular não é a guerra, mas que esta pode ser uma necessidade política, quando se é injustamente agredido e é preciso a defesa mais intransigente dos direitos do ser humano.

Che não era um Quixote lutando contra moinhos, mas um ser humano convencido até a alma dos seus sonhos, o que o une a todos os progressistas do mundo, nos quais a dor ou o cansaço não matou a utopia.

É, Che… Como diz a canção, “depois de tanto tempo e tanta tempestade, seguimos para sempre esse caminho longo, longo, por onde tu vais”…

Fonte:Correio da cidadania

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Che foi precursor da crítica ao socialismo soviético, diz professor Coggiola
  FERNANDA BARBOSA
Colaboração para a Folha Online


Após passar pela ex-Tchecoslováquia, Ernesto Che Guevara escreveu sobre os problemas do chamado “socialismo real”, tornando-se o precursor das críticas ao regime implantado pela ex-União Soviética (URSS), segundo o argentino Osvaldo Coggiola, pós-doutor em História e professor da Universidade de São Paulo.

Segundo o estudioso, o guerrilheiro argentino ganhou mais projeção com a possibilidade atual de “confrontos de natureza revolucionária” na América Latina, onde Che representa a “mais recente memória” da revolução.

“Nós vemos que ele [Che] é colocado na Venezuela ao lado do [atual presidente] Hugo Chávez, e até mesmo de Jesus Cristo, como uma espécie de figura histórica que continua a inspirar”, disse o professor da USP em entrevista por telefone à Folha Online.

Para Coggiola, a morte de Che foi decorrência de “planos mal calculados” na Bolívia, onde não se sabia se ele queria “criar uma guerrilha para fazer a revolução no país”, ou uma espécie de “centro de treinamento para estendê-la para outros países latino-americanos”.

De acordo com o professor, o revolucionário fracassou por não considerar as diferenças entre os países latino-americanos e tentar fazer “um movimento de natureza política única”.

Na opinião de Coggiola, Che Guevara “não era santo”, mas apresentar como “ditador sanguinário” alguém que “deixou para trás todas as possibilidades de uma vida mais calma para se engajar em conflitos revolucionários” é algo “caricaturado” e “deturpado”. “O legado político de Che tem que ser discutido criticamente, e a figura dele tem que ser humanizada”, afirma o professor.

Veja a íntegra da entrevista com Oswaldo Coggiola:

Folha Online – A figura de Che Guevara influenciou os movimentos antiditadura na América Latina?

Oswaldo Coggiola – A figura do Che [influenciou] somente se for ligada à Revolução Cubana. Os movimentos antiditadura foram democráticos. O Che não tinha uma influência especial sobre eles. Sua imagem se torna mais popular depois da queda das ditaduras, quando os símbolos puderam ser expostos abertamente. Nesse momento, o Che aparece muito forte como um ícone de mudança revolucionária.

Folha Online – A morte dele contribuiu para reforçar essa imagem?

Coggiola – Em primeiro lugar, ele morreu jovem, com menos de 40 anos de idade e combatendo. Então, apesar de muitas frustrações da esquerda da América Latina, ele é visto como uma pessoa que lutou até as últimas conseqüências. Nisso pesa o fato de ele ter escolhido uma outra vida após a Revolução Cubana, fora de cargos importantes no governo. Ele escolheu continuar a luta revolucionária em outras regiões, e por isso é um símbolo de conseqüência revolucionária, o que fez crescer a sua imagem de modo gigantesco. Ele se transformou em um ícone não somente de pureza revolucionária, mas de pureza humana e do desinteresse em um mundo cheio de corrupções e de compromissos.

Folha Online – A imagem do Che propagada hoje em dia continua com esse mesmo viés?
Coggiola – Sim. Claro que há a mercantilização da sua figura, mas ele continua com uma imagem muito forte, que não irá desaparecer. As circunstâncias históricas que fizeram nascer essa imagem continuam presentes. Logicamente que não é necessário mistificar o Che. Mas, por mais campanhas que se faça tentando mostrá-lo como um ditador, um maluco, a sua imagem ainda continuará forte por bastante tempo.

Folha Online – Che Guevara é considerado por simpatizantes uma espécia de “herói romântico”. Já opositores o vêem como um “ditador sanguinário”. Como o sr. vê essa contradição?

Coggiola – Ele não era santo, não faz sentido as pessoas o verem como uma espécie de “reencarnação de Jesus Cristo”. O legado político de Che tem que ser discutido criticamente, e a figura dele tem que ser humanizada. Por outro lado, pensar que uma pessoa arriscou sua vida e deixou para trás todas uma vida mais calma para se engajar em conflitos revolucionários no mundo todo, seria um ditador sanguinário que queria oprimir as pessoas é uma imagem absolutamente caricaturada. É uma deturpação da imagem do Che.

Folha Online – E qual é o legado político dele?


Coggiola – De um lado, é a vontade revolucionária que se sobrepõe às circunstâncias. Contrariamente ao conformismo que pareciaa mostrar que as mudanças revolucionárias aconteceriam pelo simples desenrolar da História, Che mostrou que essas transformações implicavam em uma vontade humana deliberada e consciente.

Por outro lado, no que diz respeito especificamente à questão da guerrilha, é claro que esse legado é muito mais confuso e ambíguo, porque diversos grupos políticos fracassaram na década de 70, principalmente porque tentaram fazer um movimento de natureza revolucionária única, independentemente das circunstâncias que atravessava cada país. E isso foi um completo fracasso político, como se viu na história da América Latina.

É um legado político contraditório, que precisa ser avaliado e discutido. O pensamento de Che era bastante amplo na construção de um Estado socialista. Ele combateu os mecanismos burocráticos com textos que só agora estão sendo conhecidos em Cuba. É um legado amplo, que deve ser avaliado com calma.

Folha Online – Qual é a influência de Che sobre a esquerda atual?

Coggiola – A esquerda é muito ampla. Se contabilizarmos o PT como esquerda, está claro que Che aparece apenas como referência alegórica. Em outros setores da esquerda, ele é levado mais a sério, sobretudo nos tempos que se avizinham, na medida em que confrontos de natureza revolucionária podem ocorrer em vários países, inclusive na América Latina. A herança revolucionária mais recente do continente é Che Guevara.

Mas nós vemos agora que ele é colocado na Venezuela ao lado do [atual presidente] Hugo Chávez, e até mesmo de Jesus Cristo, como uma espécie de figura histórica que continua a inspirar. Ninguém na esquerda pode ignorar Che Guevara. O exemplo da vida dele continua muito forte.

Folha Online – A passagem pela Europa influenciou as idéias de Che?

Coggiola – Ele permaneceu na ex-Tchecoslováquia por um tempo e teve oportunidade de observar os problemas do chamado “socialismo real”. Che escreveu textos que estão sendo resgatados e publicados nos últimos anos, pela primeira vez criticando as deformações e as deturpações desse suposto socialismo, e anunciando que ele não teria futuro. Ele pode ser visto, então, como um precursor nessa crítica.

Folha Online – Depois de presenciar o “socialismo real” na Europa, qual era a intenção dele na Bolívia?

Coggiola – A luta dele era estender a revolução latino-americana. Mas é duvidoso, existem várias polêmicas a respeito da guerrilha na Bolívia. Alguns dizem que ele queria de fato criar uma guerrilha para fazer a revolução no país. Outros afirmam que o que ele pretendia era criar uma espécie de centro de treinamento para estender a guerrilha não especificamente para a Bolívia, mas para outros países latino-americanos.

Ele veio, portanto, continuar o combate na Bolívia, mas seus planos não foram bem calculados, por isso ocorreu o fracasso político, e ele pagou com sua vida
Fonte: Folha Online

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