terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Para que serve o Natal?


"A falsa cristandade do Natal não perdoa quem lhes vira as costas e manda à merda. A mediocridade não perdoa a soberba e o desprezo. Os alienados não perdoam quem lhes evidencia a cegueira na desgraça. Felizmente sei disso há muito, e se escrevo como escrevo, com a dor e a revolta no sangue, não é para mudar nada, nem para que a razão ilumine os cegos; é apenas para manter minha própria razão enquanto cinicamente me lambuzo nos mesmos pratos de toda essa cornoália".


 por Tomázio Aguirre


O Natal ainda tem suas utilidades e significados. O óbvio é o consumismo, o trabalho extra para a turba de desempregados, o pretexto para os funcionários públicos terem mais recessos e bonificações, e a desculpa para a cachaça, para a comilança, para o prazer desenfreado na futilidade das compras e para as conversas imbecis em longas rodas de bêbados.

Mas o Natal, no Brasil, como a Copa do Mundo, serve para se esconder a merda; para o Brasil tornar-se, por alguns dias, ainda mais invisível para os brasileiros.

Tanto na Copa quanto no Natal aquilo que mais causa dor à maioria dos brasileiros cessa, que é ter que trabalhar feito cão em empreguinhos sem sentido. Só de não trabalhar já é motivo para se sentir alegre e comemorar.

O Natal ainda é prelúdio do fim de um ano e começo de outro. Num país fodido em que nada muda, e quando muda é para pior, mudar de um ano para outro é o máximo de revolução que se consegue.

Na Copa do Mundo ainda é preciso que os jogadores, milionários e transformados em bon vivant europeus, se esforcem um pouco e vençam adversários. Só assim a cachaça e alegria podem continuar. No Natal, não. Basta entoar os bordões de costume, e beber, abraçar e festejar.

Festejar o que? Nada. Só festejar e ter prazer. Pronto, é Natal. Emendado ao Reveillon, então, é só um prolongado carnaval fora de época. Mas no carnaval tudo ainda é muito descarado, as festas são muito agitadas, voltada para os mais jovens, mais desesperados e mais bêbados poderem se pegar e se esfregar. Consequentemente, muita gente fica de fora: as senhorinhas, as vovozinhas, os caretinhas, os puritanos, os muito feios, os muito tímidos, os mais religiosos, os roqueiros, etc. Já o Natal é da família, é de todos. O Natal é o carnaval dos excluídos do carnaval; e ainda tem a expectativa, os joguinhos, os abracinhos, as viagens, as reuniões de família, o oba-oba dos shoppings, as luzes, o clima de festa na Rede Globo. A desgraça que reina no Brasil dá um tempo para os brasileiros; é afastada do cotidiano, dos noticiários de TV, e é possível relaxar um pouco – embora tenha que ser à custa de cerveja, muita cerveja.

Cristo? Que Cristo que nada. Alguns evangélicos estão tentando ressuscitá-lo, mas por enquanto o que manda é a festa pela festa, o passe-livre para a comilança, a bebedeira, o vício das compras nos shoppings - a farra sem culpa. É o momento do povo-bunda se sentir como um rico europeu gordo e bêbado se lambuzando em açúcar e pernil de porco, bebendo até virar o olho no seio da família. É quando a putaria não precisa ser na zona, pode ser na casa da mamãe ou do sogro.

Quantos Natais esse país ainda agüenta? Acho que muitos. Inversamente proporcional à desgraça dos brasileiros, o Natal e o Carnaval parecem ter um futuro promissor e vida longa, mais até do que a Copa do Mundo – onde o joguinho de jogadores milionários e apátridas vai se tornar cada vez mais enfadonho.

Um povo não afunda só em sofrimento; afunda em deleite, prazer e cegueira para o que lhe atinge. Um povo que festeja para socorrer-se da desgraça mostra já ter perdido a sua capacidade de reagir. Não é à toa que só alguns povos africanos continuam tão alegres quanto os brasileiros. Compartilham a alegria na desgraça. Comemoram a liberdade de se iludirem no caos. O que mais há para fazer? Nada. Viva o Natal!

A consciência de que o Natal é isso, nada mais que isso, no entanto, já desfaz a possibilidade de que o Natal funcione com este fim. Um Natal negativo, trágico, saboreado apenas como um ato a mais da desgraça geral, portanto, não tem como funcionar para a alienação da desgraça iminente. O Natal só é Natal se a maioria das pessoas o vivenciarem, em toda sua idiotice, no mais absoluto desconhecimento de sua real serventia. Desmascarar o Natal, ou denunciar sua função social, o inutilizaria, com a conseqüência de ameaçar antecipar um estado de horror insuportável diante da desgraça. É do humano preferir a ilusão à finitude e à morte.

A possibilidade de desnudar o Natal, portanto, só existe no campo da hipótese, não do que se torna prático. A prática justamente é o oposto, é o próprio Natal, avassalador em desmanchar qualquer crítica, qualquer reflexão, qualquer reação. Enquanto escrevo, em outra sala já me esperam o cigarro e a cerveja.

É Natal, e o Natal me cerca de todos os lados. No máximo conseguirei escapar da leitoa e dos sobrinhos cobrando presentes. Entorpecido pelo cigarro e pela cerveja vou ter que sorrir, abraçar e comemorar. Amigo secreto também é de doer. Não comprei presentes, mas não tenho dúvidas, alguém há de tê-lo feito por mim. Colocar-me-ão um presentinho em minhas mãos. Meu sorriso vai amarelar-se ainda mais; meus goles na cerveja se atropelarão. É Natal e eu vou ter que me conformar. Vou ter que me embriagar. Vou ter que comemorar.

Não conheço quem não o comemore; e se nesse dia mando todos à merda, nos outros, quando de alguém precisar, vou ser obrigado a ouvir o desdém. A falsa cristandade do Natal não perdoa quem lhes vira as costas e manda à merda. A mediocridade não perdoa a soberba e o desprezo. Os alienados não perdoam quem lhes evidencia a cegueira na desgraça. Felizmente sei disso há muito, e se escrevo como escrevo, com a dor e a revolta no sangue, não é para mudar nada, nem para que a razão ilumine os cegos; é apenas para manter minha própria razão enquanto cinicamente me lambuzo nos mesmos pratos de toda essa cornoália.

Sou um rato, um cínico, um covarde. Enquanto puder, trabalho para que a desgraça fique a meu favor. Não quero que ninguém pare de se lambuzar no Natal, nem de peidar, nem de arrotar, nem de se embriagar feito porco. Se me entristeço sobre o fim que leva esse país, tenho que me conformar de que apenas eu e muito poucos vamos estar cientes desse fato. A maioria vai seguir como manada em estouro, satisfeita por poder correr às cegas. Sou minoria esmagada, e se não quiser ser, terei que deixar-me correr com a manada. Ou cair fora dela, e vagar solitário – até cair sozinho.

Viva o Natal! Saio deste ato e dirijo-me a outro. Vou embriagar-me e esquecer deste texto - ao menos por horas. Para isso serve o Natal. Para isso serve esse texto. Posso enfim tratar das futilidades como se não o fossem. Tirem-me daqui!... Aumentem a TV e o som! Cheguei para não estragar a festa.
 
Fonte: BRASIL APOCALÍPTICO
Crônicas e ensaios sobre um país afundado
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